domingo, 11 de agosto de 2013

Considerações sobre o Livro “O Novo Homem” de Louis Claude de Saint Martin. (Palestra feita para a festa de aniversario da Heptada Martinista São Gonçalo)

Antes de tudo gostaria de agradecer pela oportunidade de mais uma vez poder contribuir de alguma forma pelo fortalecimento de nossa egregora, mas quando eu soube o tema do debate eu pensei, como posso falar sobre um tema que eu não compreendo, como posso falar sobre o Novo Homem se eu passo muito longe de um entendimento sobre sua essência? Por mais que eu já tenha lido e estudado as obras de Saint Martin a esse respeito, como posso entender e compreender aquilo que ainda não vivenciei? Por isso resolvi colocar o foco não sobre o Novo Homem mas sobre o que nos impede de entender e ser esse Novo Homem. Como compreender algo que não vivenciamos? Uma mãe pode avisar a um filho para não colocar a mão no fogo ou na tomada elétrica mas enquanto a criança não satisfaz sua curiosidade não sossega e só vai compreender quando sentir as dores da queimadura ou o choque. Hoje não colocamos mais a mão no fogo, ou na tomada pois já vivenciamos essa experiência através de nossos antepassados em nós mesmos. Quanta vivencia falta então, para evitarmos os erros que nos prendem a esse mundo circular, esse orbe rotatório que chamamos de matéria? Essa é uma pergunta que não quer calar e a resposta está dentro de cada um de nós. Saint Martin nos fala da gloria de enxergar essa libertação através do nosso interior se abrindo, mas o único modo de abrir essa porta é através da percepção do quão ilusório é o mundo em que vivemos e consideramos real. Há muito tempo atrás, na minha adolescência li um livro onde pude ter a clara noção de como isso funciona. Não me lembro do autor nem o nome do livro, mas através de um pequeno exemplo alegórico pude entender isso de modo objetivo. Imaginemos um mundo em uma folha de papel onde existiriam dois pontos com autoconsciência que poderiam circular livremente por ali, eles viveriam tranquilamente comunicando-se entre si e até felizes, mas um dia, um homem que observava de longe a alegria daqueles inocentes pontos resolver fazer uma brincadeira e desenha uma linha separando os dois pontinhos. Eles continuam se ouvindo mas não conseguem mais se ver, um obstáculo intransponível os está separando, mas o homem que não é tão mal assim começa a falar para o ponto que é apenas uma linha que os separa, e que basta dar um pequeno salto e ele pode encontrar seu amigo novamente. O Ponto ouve essa voz estranha e não entende o que é um salto, ele só possui duas direções, mas o homem insiste e o ponto com esforço sobre-humano, salta sobre a linha e percebe que o mundo possui uma terceira dimensão, a altura. A partir de agora ele pode ir e vir na folha pulando facilmente a linha. Agora, colocando a fantasia de lado e trazendo essa historia para o nosso mundo tridimensional, podemos claramente ver que estamos vivendo presos dentro de um cubo limitado por nossos cinco sentidos. Será que realmente despertamos quando abrimos os olhos ao amanhecer? Para nós, seres humanos que vivemos no mundo das quatro dimensões do espaço/tempo, essa realidade é um fato indiscutível. Abrimos os olhos e vemos o mundo a nossa volta, ligamos o radio e ouvimos as ultimas noticias, levantamos da cama e sentimos os pés tocarem o chão, respiramos fundo e sentimos o cheirinho do café fresquinho vindo da cozinha, escovamos os dentes e sentimos o sabor refrescante de menta da pasta de dentes. Estamos presos às informações de nossos sentidos físicos. Mas será que nisso reside tudo? Se alguma vez já nos questionamos a esse respeito, significa que não estamos satisfeitos com as respostas dadas pelos sentidos. Por mais que confiemos neles, sempre nos resta aquela duvida, basta fazer um daqueles pequenos testes de ilusão de ótica que encontramos na internet pra perceber o quão falho é nosso sistema sensorial... Às vezes demoramos a perceber certas coisas que estão a frente de nossos narizes. Por quê? Por causa de nosso ponto de referencia. Nossa atenção filtra certas coisas que não nos interessa naquele momento de tal modo que nos tornamos cegos para elas. Não vermos algo não significa que não exista. E se vemos algo, ele existe pois o criamos, esse algo existe somente para mim e para aqueles que estão dispostos a vê-lo. O que acontece é que na “realidade relativa” em que estamos todos imersos, estamos todos dispostos a perceber as coisas da mesma forma. Dentro do teclado cósmico, nos situamos em uma oitava pequenininha ali no meio e desconhecemos totalmente a existência das outras oitavas. Isso me leva a pensar que, poderia haver uma outra realidade alem dessa em que vivemos? E eu me respondo: Sim. Mas como seria essa outra realidade, ou melhor, como seriam essas outras realidades? Não sei, mas posso imaginar... Mas imaginar não me responde as perguntas. Seria necessário ao ser humano o desenvolvimento de um novo modo sensorial, a fim de perceber outras ”realidades”. Isso me remete a outro de nossos mestres do passado Karl Von ECKARTSHAUSEN, no livro Nuvem Sobre o Santuario: “...o olho do homem dos sentidos está profundamente fechado para a base absoluta de tudo que é verdadeiro e de tudo que é transcendental. E mesmo a razão que hoje queremos elevar ao trono como legisladora é tão somente a razão dos sentidos, cuja luz difere da luz transcendental como a chama da madeira apodrecida difere da luz do sol. A verdade absoluta não existe para o homem dos sentidos, mas unicamente para o homem interior e espiritual, que possui um sensorium próprio; ou, para dizer de maneira mais clara, que possui um sentido interior para perceber a verdade absoluta do mundo transcendental... Esse sentido interior do homem espiritual, esse sensorium de um mundo metafísico, infelizmente ainda não é conhecido por aqueles que estão fora... Mas como poderia ser de outro modo? Para ver é preciso ter olhos; para ouvir, ouvidos. Todo objeto sensível requer o seu sentido. Assim é que o objeto transcendental também requer o seu sensorium, e este sensorium está fechado na maioria dos homens...” Enquanto não nos livrarmos da falsa sensação de felicidade criada através da endorfina e da adrenalina invadindo nosso cérebro, não vamos ter VONTADE de descobrir essa verdade além dos nossos limites sensoriais e, portanto manteremos lacrada essa porta. Mas o Cósmico, ou providencia, ou Deus ou como quiserem chamar o equilíbrio das forças universais é sábio e está sempre nos tentando fazer abrir essa porta e nos coloca obstáculos a essa felicidade falsa, gerando infortúnios, ou seja, certas situações onde maldizemos e questionamos a sabedoria divina. Sim, os infortúnios, as tempestades, os furacões que sopram em nossas vidas deveriam servir como chaves para a abertura dessas portas da consciência. Saint Martin chama a isso de remédio amargo, um “medicamento composto de dois ingredientes, de acordo com nossa enfermidade, que é uma mistura de bem com o mal”. Mas é preciso estar preparado para que o remédio faça efeito, é preciso ao menos estar na via de regeneração, caso contrario, não receberemos o remédio pois não sentiremos seu efeito pois o que faríamos? Apenas nos lamentaríamos, xingariamos Deus, blasfemaríamos e acabaríamos nos trancando em uma roda de erros sem fim, ao invés de aprendermos com eles nos enterraríamos cada vez mais. Erramos sim e errar também pode significar vagar. Cabe a nós errar mas com o objetivo de aprender. Erremos mas aprendamos com eles para que eles possam nos guiar em direção à luz. Não devemos nos viciar nos erros tanto quanto nos viciamos em adrenalina e endorfina. Quantos de nós aqui não estamos sempre repetindo os mesmos erros? Quantas vezes, por situações diferentes, acabamos percebendo o mesmo erro? Por isso errar é vagar, andar sem rumo. Mas quando percebemos isso podemos talvez estar prontos para tomar o “remédio amargo” Saint Martin deixa claro que esse remédio amargo não são as dificuldades da vida, as doenças do corpo, as injustiças de nossos semelhantes, pois essas entre aspas “punições da alma” ou provações não dão mais que uma sabedoria temporária. Mas posso considerar que essa sabedoria temporária é completamente essencial para que possamos perceber a necessidade de assimilar o remédio amargo. No contexto iniciatico, a Noite escura da alma é um dos períodos cruciais para a assimilação de uma nova percepção mais ampla. Lembremos que na escuridão as estrelas são sempre mais brilhantes. Como poderemos enxergar verdadeiramente a luz das estrelas se vivemos sempre sob a luz artificial das lâmpadas elétricas? E alem disso, como poderemos nos tornar essa luz se nem ao menos conseguimos vê-la? Portanto a ampliação da percepção pode ampliar também a própria noção de autoconsciência e a ampliação da autoconsciência pode ampliar também a noção de consciência do todo. A simples observação dos astros no céu dava a impressão de que a Terra era o centro do Universo. Observando mais atentamente percebeu-se que a Terra se movia tanto quanto os outros astros e que o centro era o Sol. A criança observando seus pais agindo em função dela acha que ela própria é o centro do universo e quando cresce percebe que é apenas mais um no mundo. Mas se ampliar essa observação ao invés de para fora mas para dentro pode criar uma outra percepção ainda mais subjetiva e pode acabar descobrindo que o Deus que procurava fora na verdade habita em seu coração. O que Saint Martin nos diz é que a verdadeira alegria só pode existir depois que o homem abrir seu interior à essa verdade absoluta que está muito alem do que tocamos e sentimos, enquanto isso, todo o resto é distração. Mas é nesse ponto exato que paro. Quais os caminhos para abertura do nosso interior? Saint Martin escreveu centenas de paginas a esse respeito mas mesmo assim sou burro demais e ainda não consegui assimilar. Estou ainda na floresta dos erros. Ainda sou um homem da torrente preso no circulo Carmico mas isso me faz o pior dos homens, pois já tive acesso a toda essa informação. Não sou mais inocente e o conhecimento disso tudo me torna ainda mais culpado por não colocar em pratica e tentar descobrir em mim esse Novo Homem. É tão simples ser um Homem de Desejo, basta trabalhar em descobrir a Verdadeira Vontade, não aqueles desejos conscientes que saciam o corpo e o ego, mas a vontade que direciona a alma. Quando o homem executa essa Verdadeira Vontade tem a inércia do Universo a seu favor, pois a Verdadeira Vontade de um homem é aquela que o torna uno com o Cósmico. Porque então, na maioria das vezes não conseguimos o que desejamos ou quando conseguimos o objeto de desejo não nos satisfaz? Porque na maioria das vezes estamos fugindo de nossa Verdadeira Vontade, aquela que fala diretamente ao coração. Por isso é tão fácil ser um homem de desejo, basta seguir o caminho do coração. Como dizia Carlos Castaneda: “Qualquer caminho é apenas um caminho e não constitui insulto algum - para si mesmo ou para os outros - abandoná-lo quando assim ordena o seu coração. (...…) Olhe cada caminho com cuidado e atenção. Tente-o tantas vezes quantas julgar necessárias...… Então, faça a si mesmo e apenas a si mesmo uma pergunta: possui esse caminho um coração? Em caso afirmativo, o caminho é bom. Caso contrário, esse caminho não possui importância alguma.” Mas ao mesmo tempo que é fácil, paradoxalmente é extremamente difícil nos tornarmos predispostos a abrir a porta de cima de nosso coração pois ela é muito pequena pois só dá espaço para aquela vontade que é única e verdadeira, por isso deixamos aberta a porta de baixo, a que dá acesso ao abdômen que é imensa permitindo assim a entrada de todo tipo de sentimento e de todo instinto involuntário. Mas mudando um pouco o foco e entrando em um tema que com certeza é polemico mas que considero importante da inspiração de Saint Martin é o aviso sobre o cuidado com os ímpetos falsos que pertencem a fantasia, ele diz o seguinte: “Ó vós, iniciadores humanos, como vos arrependereis um dia de haver enganado as almas, conduzindo-as por caminhos nulos figurativos e ilusórios que lhes deram uma calma enganadora, trazendo-lhes alegrias exteriores, comunicando-lhes sombras de verdades que lhes impediram de trabalhar na renovação do seu ser! Todas as vossas associações emblemáticas não lhes comunicaram a vida, pois elas próprias não a tem. Vossas associações práticas lhes serão ainda mais funestas, se não foi o espírito que as convocou, reuniu, constituiu e santificou por suas lágrimas e as preces da sua dor; e onde estão essas associações que nos seriam tão salutares!” Nós que escolhemos e vivemos um caminho iniciatico que a Ordem nos propõe e que tanto nos agrada, poderíamos ficar estarrecidos com esse ponto de vista de Saint Martin, mas entendo que esse alerta seja para que não nos iludamos no sentido de que nossas iniciações temporais nos tragam diretamente essa verdade. Nossas iniciações devem ser consideradas como o símbolo de um caminho e não confundida com o próprio caminho. São boas desde que saibamos aproveitá-las. Uma iniciação por si só não tem o poder de nos tornar puros, sendo sim, a indicação de uma direção. Sim, pode existir perigo no processo iniciatico quando nos tornamos orgulhosos do grau que adquirimos, quando pensamos que somos dignos dele e assumimos apenas as glorias da iniciação e não os deveres concernentes a ela. Como diz Saint Martin mais a frente: “A alma mal dirigida aumenta ainda mais os seus entraves e a desarticulação desse setenario temporal” É necessário colocar todas as faculdades a prova antes de nos acharmos prontos, porque enquanto permanecer neste terreno de dor, estará no reino da mentira. Portanto é imprescindível desconfiar dessas luzes precoces que chegam à natureza de nosso ser e que querem nos governar involuntariamente.